Monday, July 24, 2006

Testamento

É uma pena, mas coloco os pés na linha do senso comum, só para minhas palavras seguintes não beirarem o ridículo. Mas faço da vida uma personificação, só para lhe dizer que a mim ela está amarga.
Há dias que passam arrastados, difíceis de serem levados pelo tempo. Eu continuo minha caminhada sem motivo algum, sentindo esse gosto que ganha de meus sentidos, agredindo minha cabeça, confundindo minha visão.

Seria fácil dizer que tudo está ao contrário, e ninguém pôde reparar nesse detalhe. Mas se tudo fosse tão simples como uma volta completa, eu já teria sobre essa mesa todos meus sonhos construídos. Daqueles que sonhei desde criança e que agora homem posso realizar.
Cada dia que passa, aumentando meu tempo, envelhecendo o calendário, desapareço. Se alguém notasse, veria que estou sempre lá, mas aos poucos, as mãos vão perdendo sua postura, as costas começam a latejar, e dentro de minhas veias sinto ausentar-se o sangue. Encolho-me até beijar a insignificância de um inseto, que morre por causa do atrito das solas dos sapatos com o chão.

Cada centímetro que me deixa inferiormente menor, é um pedaço de minha vida que se vai. É o riso agonizante das abóboras, o gargalhar das crianças diabólicas, apontando seu dedo para as diferenças. É a afirmação de que fiz da minha existência uma arte teatral, se preocupando em alegrar o público, sem se importar se o artista gostava daquela peça.
O espelho que me reflete é tingido somente de enganos. Quando no final do espetáculo eu tiro a maquiagem, não vejo rosto algum para me definir com precisão.

Toda vez que o sol ilumina a alvorada, desperto em meio ao sangue escorrido na noite passada. Do tiro a queima roupa do meu amor, do punhal incrustado em minhas costas desferido por meu irmão, das cartas de preocupação que recebo mas que significam no final só política.
Junto forças e me levanto, sentado a minha mesa vazia. Enquanto algumas cicatrizes ainda não fechadas pintam de sangue o acento em que estou. É assim a realização de meus atos, uma mentira. Um vazio que chamei de palco, sem público algum para me dar aplausos, somente alguns loucos que cospem para me refrescar o rosto.

Vejo com o passar do dia as sombras novamente invadindo minhas ilusões. A vida que criei, achando que faria a diferença, sem saber que um dia a diferença seria a de que eles viveram enquanto fingi. Nessa sombra duvidosa eu me atiro, querendo me proteger do sol, da verdade horrenda que colhi nesses anos, procurando um fruto inexistente para mordê-lo por inteiro. Procurando algum sabor que corte o veneno de meus lábios.
Nesses passos obscuros não afirmo nada para não ver minhas crenças, se ainda as tenho, serem quebradas. Sem saber se o que haverá em minhas mãos são flores que trago para você, só para descobrir que já ganhaste um buquê melhor; uma obra complicada talhada com nossas forças; ou um punhal que se embebedará de meu sangue, quando você se tornará minha algoz.

Desço até o jardim a procurar, encontro poucas mudas. Sei que preciso plantar de novo. Volto ao meu vazio e em pouco tempo minha poção mágica está sobre a mesa: um veneno mortal que se ingerido cessará minha inútil existência. Há dias faço isso, como forma de me dar forças, gerar minha motivação banal para continuar amando a vida.
Conforme avança a noite passo minhas narinas sobre a poção, mexo-a diversas vezes com meus dedos, como se fosse um herói, dançando um tango com o diabo, resistindo à tentação de lhe vender a alma.

Passo o resto da noite rindo das outras pessoas. De sua felicidade burlesca, da luxúria que não deixam escapar, da ternura tão rasa, do inferior em que vivem. E assim passo a me achar rei, o senhor das palavras, da ilusão, mágico, que desencadeou um dominó em sua própria vida, colhendo o que lhe restou, migalhas para sanar sua fome. Se alimentando da suja, putrefata, corrompida e corrupta alma de si mesmo. Porque eu fui o ser original, seguindo tão bem suas linhas que após terminado o espetáculo, ficou sem falas.
Dilacerando sua carne com as unhas, cortando o próprio corpo para ultrapassar a existência, sentindo o coração vivo, latejando sobre o chão, enquanto a coloração bela das hemoglobinas pinta mais uma vez a superfície de minhas lamentações.

Quão romântica é minha ilusão. Quero que dêem aplausos pelas minhas palavras, chorem de piedade pelos erros, lamentem-se que minha vida fora mais infeliz do que a sua. As minhas metáforas são meu ópio, a única essência original que sobrou de minhas falácias.
O único motivo que não me deixa desaparecer, agora que não tenho mais o tamanho que nasci, são as palavras que preenchem esse papel. Quis nomeá-las como meu triunfo, único motivo para minhas carnes não cederem aos vermes pestilentos.

Tive medo ao iniciar essas palavras, que elas soassem como minhas declarações de amor, recebidas com asco pelas donzelas. Queria eu escrever palavras sobre o nosso futuro, sem saber que estou condenado a mim mesmo. Jurado a ficar sob meus domínios, cercado de meus demônios.
Tornei-me a prisão de mim mesmo, escravo de meus caprichos, ator de minha própria vida. Um arlequim zombeiro que não distingue mais a festa de seu carnaval para dor de seu funeral.

Thiago Augusto
(24-07-06)

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