Sunday, July 30, 2006

Entardecer de um dia


Era o entardecer, mas não de dia, de uma vida.

Debruçado na janela do quarto, admirava uma vista sem brilho, morta, condenada por pensamentos torrenciais, inundado por suas mágoas. Sua cor havia se apagado, seu brilho esvaecido, seu cheiro putrefato e suas esperanças enterradas.

Sua vida não havia sido assim tão ruim, nem tão boa, apenas apagada. Talvez fosse essa toda sua dor. Um pôr do sol nunca assistido, uma lua cheia sem poetas ou amantes, uma presença oculta, uma vida borrada.

Seus dedos corriam por cima das bordas falhas da janela. Assim ia juntando poeira, praticamente ignorando as gotas que jogavam-se contra a janela imitando suas lágrimas que rolavam olho abaixo. Ele próprio ignorava as lágrimas, negava-se o direito de sentir-se triste, tentava censurar o barulho ensurdecedor de seu silêncio.

Aos poucos reuniu forças para levantar-se. Descalçou seus chinelos de dedo, jogou seus óculos sobre a cama e cambaleando dirigiu-se para a porta. Observava tudo ao redor, os porta-retratos em cima do criado mudo, agora localizados no seu chão de madeira polida, os quadros que tentavam roubar sua melancolia mórbida, os móveis em pinho cobertos com lençóis brancos, que mais pareciam fantasmas na penumbra de seu ser. Assim foi caminhando por onde outrora caminhara o outro, sem toda a aflição e peso que o vazio agora lhe causava.

Adentrando o corredor sem luz, alcançou a porta que o separava do mundo e a contemplou. Não mais significava uma saída de seu mundo, de seu esconderijo, apenas um vento frio que sopraria nas labaredas sulfúricas do inferno de seu eu, do câncer que corroia seu corpo e sua alma, do espaço carbonizado antes adornado de cores em tom pastel.

Abrindo a porta, sentiu a brisa fresca que beijava seu rosto não-barbeado. As gotas de chuva foram, aos poucos, misturando-se às lágrimas contidas e essas agora tornavam-se torrenciais. Sua camisa de botões não parecia ter o mesmo valor que na vitrine, e suas calças que destoavam com a tonalidade da primeira aos poucos perdia-se na mistura com a lama de seus pés.

Sem fechar a porta sentiu a chuva como que pela primeira vez, e abriu os braços envolvendo o mundo. Este parecia reunir-se naquele momento, naquele lugar e que ao mesmo tempo parecia-lhe tão estranho, desbravado e assustador.

As nuvens choravam seu choro e a terra preparava-se para receber-lhe. Ninguém jamais decifraria sua dor, talvez nem importasse a qualquer um. Ele seria, mais uma vez, usado em propósitos que nada o acrescentaria. Naquela situação todos eram bons, pensava. E assim deixou-se abraçar a terra e passando o frio que assolava seu corpo, passou, após algum tempo, a sentir que fazia parte de algo e assim uniu-se à imensidão do mundo, perdendo-se na ignomínia da covardia, no entregar-se ao derradeiro vazio.


Eduardo Leite

1 Comments:

At Monday, August 07, 2006 8:44:00 PM , Blogger 3 Vozes said...

Bom, Dudu. Simples, leve, só deixando a entender toda a coisa. Parabéns ;)

 

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