Tuesday, May 02, 2006

Antigas tradições - Parte II

Levantei logo cedo, nem sinal do moleque. Fui para as compras e resolvi dar uma passada num lugar que costumávamos visitar com meu avô, uma loja de especiarias que ficava bem no centro da feira de alimentos. Com dificuldade encontrei a ladeira que levava ao beco onde o velho William sobrevivia com suas ervas e conselhos. Era um beco escuro e vazio como todo lugar macabro parecia ser, entrei um pouco hesitante.

O senhor William era o mesmo, nenhuma ruga a mais, nenhuma a menos. O mesmo vendedor de ervas metido a bruxo de sempre. Memórias afloraram em minha mente de quando eu era criança e meu avô ia comigo e meu irmão no colo comprar algum tempero para o jantar ou algum ingrediente para comemorar o Equinócio. Aproximei-me do velho com certa cautela, achei que não me reconheceria, mas ele logo deu um sorriso e chamou-me pelo nome.

“Como vai sr Donant? Faz um bom tempo que não venho por aqui.”
“Claro, claro. Agora você mora na cidade para sustentar sua vó e seu irmão, eu entendo perfeitamente. Me visitando tão de surpresa, provavelmente você está em busca de seu irmão, acertei?
“É, ele anda com umas idéias tortas na cabeça, leva muito a sério as histórias de nosso avô e sumiu desde ontem.”
“O Don era muito sábio, não vivia de fantasias! E seu irmão andou me perguntando sobre alguns ingredientes para um certo ritual que diz ele ter descoberto fuçando as coisas de seu avô. Se quer um conselho, vá ao lago norte, é o seu lugar favorito. É um ritual perigoso e ”

Claro, costumávamos ir ao lago norte com nosso avô para fazer os rituais de Equinócio, não conseguia entender por que não tinha ido lá antes, era do outro lado da cidade, demoraria cerca de meia hora e ele estava sumido há muito tempo. Me pus a correr.

Um dos trechos que davam para o lago era muito bonito, cheio de árvores e de animais que conviviam harmoniosamente com os homens, não se aproximavam de nós, nem nós deles. Assim era a vida no campo, sossegada, ninguém incomodava ninguém, não se sabia de assaltos, roubos, assassinatos, mortes violentas. Nada. Olhei em volta e nada vi, procurei por meu irmão, gritei, chamei, nada. Sentei na beira do lado e atirei pedras como costumava fazer em minha infância, quando não tinha irmão e passava as tardes sozinho. Comecei a olhar aquele lugar, não olhar de passar os olhos, mas perceber os detalhes, reparar como o pôr-do-sol era bonito e parecia tocar as montanhas. Senti uma angústia no peito e chorei pelo meu avô que morrera tão cedo, deixando meu irmão e eu órfãos. Chorei um choro contido por muito tempo e chorei pelo meu irmão, quis ser seu pai, seu avô, menos seu irmão, seu amigo. Chorei até que um barulho me interrompeu, meu celular tocou.

Atendi o celular, era a polícia local dizendo ter encontrado meu irmão e que eu deveria dirigir-me ao cemitério com urgência. Estava nauseado demais para poder me levantar, como não pensei no cemitério? Ele queria ressucitar meu avô, nada mais óbvio que o cemitério. Mas as forças não vinham. O pensamento que eu reprimia dentro de mim veio à tona, os rituais de ressurreição envolviam sangue, sangue era a energia vital, teria ele sangrado até a morte? Não conseguia afastar esse pensamento ruim e vomitei muito, até que consegui forças para ir até o local sugerido pelo delegado.

Cheguei lá, havia uma multidão que os policiais continham com a faixa e muitos conhecidos viravam o rosto de meu olhar, meu nervosismo aumentou e não conseguia lembrar de nada que não fosse os policiais me segurando enquanto eu gritava e soluçava querendo passar. O delegado pediu que eu mantesse a calma e deixou-me passar até o local onde havia um corpo estendido no chão e coberto por um pano. Corri até lá e me abaixei, lentamente descobri seu rosto. Seus olhos entreabertos estavam semi-cerrados, tristes, decepcionados, seus pulsos estavam cortados e não contive o desespero. A multidão dispersou-se com medo de meus urros, o delegado aproximou-se depois de um tempo me mostrando o papel que havia achado em suas mãos. Era mesmo o ritual que envolvia sangue, mas não havia ninguém lá com ele parar cessar o sangramento e ele morrera só, ao lado do túmulo de meu avô.

Passados uns 10 min, minha avô chegou. Ele estava vivo e aproximou-se do corpo, tirou o pano que cobria, virou-se para mim e disse: “A culpa é sua, você o abandonou e agora você o trará de volta e fará sentir a dor que estou sentindo por ele dar a vida por mim? A culpa é toda sua!”


Continua...

Eduardo Leite

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