Friday, October 27, 2006

Percepções

I

Do tempo que passa, percebemos que tudo contem um aprendizado, algo a se ganhar. Seguindo no passo calmo de cada dia, aprendemos a bela sabedoria de fingir.

Dizer amor como bom dia. Parecer revolucionário erguendo o dedo em riste, dizendo palavras mortíferas.

O mal do aprender é descobrir que, mesmo de coração, podemos repetir os passos indefinidamente.

Usar a mesma declaração de amor para ter uma estranha em seus braços. Dizer que tudo está bem, obrigado, quando chove e você esqueceu o guarda chuva.


II


Contam os relatos que aquele famoso pintor, autor do quadro mais famoso do mundo, o fez por encomenda do rei.

Foi pintando pouco a pouco, a cada manhã de mau humor. Pincelando de mau gosto, tendo plena consciência que o rei aceitaria qualquer quadro, desde que fosse chamado de arte.

Dias depois de concluído, foi aclamado como gênio pela corte. A pintura foi considerada revolução, motivo o qual o rei fez uma festa.

Todos ficaram com inveja daquela pintura, que, nas palavras do rei, era um reflexo perfeito da brilhante alma e do brilhante coração daquele pintor.


Quem diria...

III


Olhava o autor sua folha em branco. Piscava-lhe a consciência sabendo que deveria escrever naquela ausência mais uma crônica para o jornal. Tentou e tentou, sem sucesso.

Cinco folhas quase em branco já estavam rasgadas no lixo, quando resolveu começar de novo. Sabia muito bem de seu ofício, anos sendo um conhecedor das palavras, certamente poderia guiá-las sem muito custo.

Porém faltava-lhe naquelas palavras sua alma. Naquele dia ela não pulsava em êxtase com uma idéia curiosa, nenhuma prosa inovadora ou qualquer bobagem de uma crônica metalingüística falando sobre a dificuldade de escrever.

Lembrou-se do amigo de infância por um momento. Pensou em escrever sobre seus tempos áureos. Mas tudo parecia um velho exercício. Decidiu não escrever nada.

Quando o jornal ligou mais tarde, foi exatamente o que disse. “Não produzirei nada hoje, tudo sairia automático. Sem inspiração, sem textos”.

Ao abrir o jornal, no dia seguinte, encontrou uma reprise. E descobriu na mesma tarde que seria despedido no final do mês.


IV

Foi triste o que aconteceu com os dois. Eu que assisti tudo à distância, poderia afirmar que iam bem. Mas ao encontrá-la sozinha naquele supermercado, descobri o contrário.

A marca da aliança ainda era visível, traços que demoram a sumir. Mas achei que ela estava bem. A convidei para um café, para ouvir os detalhes.

Ela disse que poderia aturar quase tudo, mas de forma alguma poderia fingir que aquele amor não se corroia aos poucos. Os vícios o invadiam como uma lenta parada cardíaca. O amor começava a agonizar.

Quando quase morto, tomou a atitude que achava correta: lhe disse a verdade. O amor já estava morto, mas ainda a vida poderia trazer a ambos novos ares da manhã.

Por um lado, era deveras triste. Por outro, ela parecia contente. Não pelo fim, mas por justamente não ser uma mentirosa para si própria.

Ela poderia aturar quase tudo, menos a mentira diante de seus olhos.


Thiago Augusto
09 de Março de 2006

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